Convido todos a tentarem esse exercício em algum momento: ler e escrever para além do que é original à escritura - ou para tudo que ela contém implicitamente. Como escritora, sinto-me cada dia mais próxima dos autores que admiro, em busca constante pela manutenção do diálogo com suas obras. Esse exercício é mais uma forma de fazê-lo, de modo que espero ser este um conto que faz jus ao todo que este Estacas me trouxe. Que seja uma leitura, acima de tudo, interessante.
Perspectiva
Benjamin está com seis meses agora, mas
quando olho lá para fora, não consigo parar de pensar em seus dois, três anos:
o verde agora tão desabitado do quintal, ornamentado pelos brinquedos de cores
vivas deixados para trás, marcando o rastro dos passos do meu filho. Visualizo
pistas de carrinho, arremessos de futebol, corridas ao redor da casa,
dinossauros e monstros dos quais ele salvará o mundo, heróis mascarados a
povoar sua imaginação. Que histórias inventará para si mesmo? Que sonhos construirá para o futuro? Com ele no colo, a dormir sereno, sou tomado de
assombro quando ouço o estrondo metálico da queda. Minha cabeça ergue de
imediato: as estacas estão no chão, vencidas pelos novos moradores. Era marca
registrada do meu recém falecido vizinho de porta, vesti-las de acordo com seu
humor inconstante. Há no bairro quem conte da época em que ele o fazia com
fantasias mais tradicionais, mas isso foi antes dos filhos saírem de casa. Daí
em diante, fase que presenciei após a mudança, o poste do outro lado da rua
virou meio de arte, correspondência ou escape, conforme a forma que escolhia
para adornar sua cruz. Deixava incomodados seus arredores, mas nunca dei muita
bola a suas esquisitices. Nenhum de nós podia culpá-lo por sentir, não caber e,
então, extravasar as excentricidades que acompanham a velhice. Alguém com
percepção artística talvez visse ali potencial suficiente para escrever uma
história, ou um ensaio qualquer, enquanto uma mente mais aguçada, talvez
enxergasse o tema de sua próxima pesquisa. Eu só achava engraçado. Não que
importe agora: claramente, meus novos vizinhos de porta discordam de suas
manifestações. Torno a olhar para Benjamin, tão pequeno, mas já receptor de
tamanhas expectativas: quem será essa criança conforme cresce? Será ele do tipo
que envelhece com calma, ou do tipo que recebe a idade tumultuado? Imagino
uma cruz cravada na entrada da nossa casa, seus espantalhos expostos ali, e só
consigo pedir, em silêncio, que ele nunca precise de um desses por solidão.
O livro em que Estacas se encontra é Dez de Dezembro, coletânea de contos do autor George Saunders (traduzidos por José Geraldo Couto), publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras em maio de 2014. É
possível ler trechos do livro através da amostra disponibilizada pelo
Google Livros em: https://bit.ly/2lYyLdT, e/ou adquiri-lo pelo link: https://amzn.to/2M2KKk0.
(imagem: Unsplash)
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